quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

China: mudanças que não mudam

China: mudanças que não mudam


Há anos que a China se tornou uma unanimidade. Como todas as unanimidades, em que entra a propaganda, junto a banalidades – repetidas como grandes dados do saber – esgueiram-se mistificações e inverdades.

Pergunte-se o leitor o que ouve dizer sobre a China nos meios de comunicação ou nas rodas de conversa de que participa.

Dirão que a China é o País mais populoso do mundo; que sua cultura é milenar; que a Muralha da China pode ser vista da Lua; que a China caminha para se tornar a grande potência do futuro. Tornou-se ainda voz corrente afirmar que o regime chinês tem passado por mudanças profundas, que seu crescimento econômico é avassalador, que algumas de suas cidades se encheram de arranha-céus, de viadutos, de automóveis, de gente que está imersa no estilo de vida frenético contemporâneo.

Natureza das mudanças
É bem verdade que se questionarmos no que consistem precisamente tais mudanças, as respostas de muitos serão vagas ou generalistas.

Mencionarão a adoção do “capitalismo” pela China e elogiarão o espírito pragmático de seus dirigentes, que fizeram o país encher-se de oportunidades de negócios, dando abertura para investidores estrangeiros e criando oportunidades de chineses ingressarem nas atividades empresariais; outros mencionarão ainda as Olimpíadas de Pequim, o evento internacional de grande projeção simbólica que teria definitivamente consagrado a entrada da China na chamada modernidade.

Poucos se referirão à corrida armamentista da China, ao neo-imperialismo chinês na África e na América do Sul, às práticas pouco honestas no comércio internacional, à ofensiva geo-política em busca de petróleo, de minério de ferro e de outras matérias primas, à violação sistemática de segredos industriais de grandes companhias, ao regime de trabalhos forçados ou de baixa remuneração, ao desrespeito aos direitos mínimos dos trabalhadores e às milhares de revoltas sociais, ou ainda ao sistema ditatorial de partido único do regime comunista chinês.

Mudou a natureza ideológica do regime?
Ninguém nega que mudanças estão ocorrendo na China, embora elas não correspondam à ideia simplista que das mesmas fazem muitos ocidentais. Os dirigentes chineses falam do “socialismo de mercado”, uma fórmula em que o Estado está presente no capital de todas as empresas e em que a estratégia de investimentos é decidida pelo Politburo do Partido. Mas isso seria tema para outro artigo.

A meu ver uma pergunta fundamental se impõe: basta um regime de Partido Único, o Partido Comunista Chinês, empreender algumas mudanças sócio-econômicas, para se poder afirmar que a natureza profunda de sua ideologia – ateia e materialista – mudou substancialmente?

O que mais chama a atenção é que muitos católicos ocidentais dão aval – por vezes de modo eufórico – à tão difundida versão de que a China mudou, que ela renunciou à sua ideologia e aderiu pragmaticamente à economia de mercado. Será que a maior parte desses católicos tem noção de qual é a realidade vivida por seus irmãos de fé na China?

Creio bem que se impõe uma reflexão a respeito.

Perseguição sistemática aos católicos
Desde a revolução maoísta que levou o Partido Comunista Chinês a tomar o poder em 1949, os católicos passaram a viver sob a perseguição e o terror. As táticas e estratégias repressivas sofreram adaptações ao longo dos anos, inclusive com a criação de uma organização fantoche, a chamada Igreja Patriótica, rompida com Roma e totalmente dependente do regime. Apesar de todas as mudanças que se operaram na China a perseguição aos católicos recrudesceu, e eles continuam obrigados a praticar a religião na clandestinidade, como se vê, por exemplo, na foto da Missa que ilustra este post.

Gostaria, pois, de compartilhar com os leitores do Radar da Mídia a substanciosa entrevista concedida em Roma pelo Pe. Bernardo Cervellera, do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras, à revista de cultura católica Catolicismo (nov. 2011). Considerado o maior especialista romano sobre a Igreja na China, o Pe. Cervellera foi Professor da Universidade Beida, em Pequim, foi diretor da Agência de imprensa vaticana “Fides” e atualmente é o diretor da prestigiosa Agência AsiaNews:
  • Catolicismo — Circularam ultimamente muitas notícias sobre um esfriamento das relações entre a China e o Vaticano. O que há de certo nisso?

    Pe. Cervellera — Sou convidado algumas vezes a participar de encontros com industriais italianos que me perguntam sobre a China. Quando me refiro às perseguições que sofrem lá os católicos, ficam surpresos. Porque hoje muitíssimas pessoas possuem uma imagem turística da China, aliada a uma noção confusa oriunda de notícias que informam sobre a quantidade de arranha-céus construídos nas grandes cidades, da existência de grande número de automóveis Ferrari, do aumento da renda média do trabalhador chinês, etc. Pensam tais pessoas que, pelo fato de a China estar apresentando aparentes mudanças do comunismo para o capitalismo, a situação dos direitos humanos também se alterou. Acompanho há 20 anos a situação chinesa e posso afirmar que, se do ponto de vista geográfico muita coisa mudou (novas autopistas, condomínios, trens, etc.), por outro lado, a perseguição religiosa manteve-se sempre constante.

    Houve há poucos meses sagrações ilícitas de bispos, ou seja, sem mandato papal. Nos últimos quatro anos ocorreram cinco dessas sagrações. Alguns bispos débeis ou timoratos foram obrigados a participar das mesmas, tendo sido conduzidos à força pela polícia. Isto é algo que não se registrava desde a época da Revolução Cultural dos anos 50 e do início do maoísmo. Época na qual se tentava criar uma igreja nacional composta de padres e bispos sob a direção do Partido Comunista Chinês. Na teoria, uma igreja independente de Roma; na prática, dependente do governo comunista. Perguntei recentemente a um católico chinês sobre a mudança de rumo do governo. Ele simplesmente respondeu-me dizendo que para os estrangeiros parece que a China mudou, quando ela, de fato, sempre foi assim. Há uma perseguição contínua, cuja extensão pode ter variado um pouco, mas nunca cessou desde que os comunistas tomaram o poder em 1949.
    Catolicismo — Os bispos chineses fiéis ao papado continuam sendo presos?

    Pe. Cervellera — Por uma sugestão de Stalin a Mao Tsé-Tung, o Partido Comunista Chinês quis inicialmente exterminar a Igreja, mas isto não funcionou. Criaram então, em 1957, a Associação Patriótica, a qual ficou encarregada pelo Partido Comunista de controlar a Igreja. Já o Papa Pio XII condenou essa associação em 1958 e declarou que os bispos que sagrassem outros bispos escolhidos por ela estavam excomungados. Todos os bispos que se opuseram, nos anos 50, a essa manobra comunista, terminaram na prisão, sendo obrigados a permanecer 20 ou 30 anos sob o regime de trabalhos forçados. Por exemplo, o bispo de Xangai, D. Ignatius Kung; o bispo de Booding, D. José Fan Xueyan; o bispo de Cantão, D. Dominic Tan Yee-Ming, e tantos outros. Há ainda vários bispos “clandestinos” — ou seja, que se negam a fazer parte dessa Associação Patriótica — os quais se encontram nas mãos da polícia. É o caso, por exemplo, de D. Jacobo Su Zhimin, há 15 anos nessa situação. Ele está desaparecido e sem sinais de vida. E isso só por não querer fazer parte da Associação Patriótica. Também o bispo de Yixian, D. Cosme Shi Enxiang, encontra-se nas mãos da polícia há 10 anos. De forma totalmente ilegal, apesar das poucas leis existentes na China. Estamos preocupados, porque muitos bispos que a polícia fez desaparecer, reapareceram depois... mortos.
    Foi o caso, entre outros, de D. José Fan Xuyean, bispo de Booding. Após passar três meses nas mãos da polícia, em 1992, seu cadáver foi deixado diante da porta de sua casa, envolto em papel celofane. Seus familiares constataram que ele tinha sido torturado brutalmente, a ponto de ter uma de suas pernas quebrada. Era um ancião de 90 anos, que já havia passado 32 anos na prisão.
    Há poucos anos ocorreram outras mortes. Em 2007, alguns meses antes das Olimpíadas (esta celebração da modernidade da China...), um dos prelados da província Hebei, D. Giovanni Han Dingxian, bispo de Yongnian, reapareceu num hospital após seis anos de detenção. Seus familiares encontraram-no moribundo. De fato, ele faleceu às 23 horas daquele mesmo dia. Seu corpo foi cremado e sepultado às 5 horas da manhã, sem a presença dos familiares. Os fiéis julgam que a cremação foi efetuada para evitar as provas que derivariam da autópsia.

    Catolicismo — Qual é a situação atual dos bispos “subterrâneos”, considerados “ilegais” pelo regime comunista?

    Pe. Cervellera — Existem na China 37 bispos “subterrâneos”, ou seja, que não pertencem à igreja oficial, controlada pela Associação Patriótica. Esses bispos encontram-se em prisão domiciliar; estão isolados, não podem exercer seu ministério. O mais velho deles é o bispo de Zhengding, D. Julio Jia Zhiguo, muito estimado pela população. Ele mantém 200 meninos abandonados, sobretudo deficientes físicos, que não são aceitos por motivos culturais. O bispo lhes proporciona roupa e alimento, cuida dessas crianças com a ajuda de algumas freiras. Ele é vigiado dia e noite por quatro policiais, para que não possa sair de casa nem se encontrar com quaisquer pessoas. Sua “culpa”: não querer renunciar a seus vínculos com o Papa. Muitas vezes é preso e levado para “férias” forçadas, a fim de receber doutrinação política do Partido Comunista sobre a grandeza de seu programa e de como se deve dar adesão ao mesmo.
    Atualmente até os bispos da igreja oficial — de obediência ao governo — estão na mira do Partido Comunista. Não é uma perseguição na qual eles são conduzidos a campos de trabalhos forçados ou fuzilados, mas são controlados. Desde 2006, quando das novas sagrações ilegais, eles são seguidos e controlados em suas viagens pastorais. Por que este medo do governo? É que, graças ao trabalho dos Papas, quase todos esses bispos da igreja oficial — sagrados mediante intervenção do partido e sem permissão papal — escreveram ao Vaticano pedindo perdão pela sua situação, tendo sido reintegrados na comunhão católica. Quando o Papa Bento XVI escreveu uma carta aos católicos da China, em 2007, ele a enviou indistintamente aos bispos da Igreja Católica, não fazendo distinção entre aqueles que eram fiéis e os que não eram.

    Catolicismo — Se há tantos bispos que tiveram de pedir perdão ao Papa por estarem ligados à Associação Patriótica, por que o governo tem tanto medo deles?

    Pe. Cervellera — Porque a Igreja Católica chinesa é hoje muitíssimo mais unida que no tempo da Revolução Cultural ou nos anos 80. Este é o ponto importante e o que explica o aumento da perseguição. A unidade da Igreja na China é um dos grandes fracassos do Partido Comunista Chinês. Nos anos 50 eles queriam destruir todas as religiões. Convencendo-se de que não o conseguiam, tentaram então criar religiões nacionais — seja a budista, a islâmica, ou igrejas protestantes nacionais. E, transcorridos 60 anos, na prática, a Igreja Católica é hoje mais unida do que antes. É por isso que a Associação Patriótica — cujo novo presidente é paradoxalmente um bispo em comunhão pessoal com o Papa — deseja a sagração de bispos ilegítimos, a ponto de forçar um bispo excomungado a ser presidente de um organismo subordinado a ela, a conferência dos bispos da igreja patriótica. Este é um modo de misturar as coisas, criar divisão e confusão generalizada.
    A situação é muito dura. Os bispos oficiais [subservientes ao regime] e os “subterrâneos” [obedientes a Roma] são muito controlados. Fiscalizam-se todos os seus encontros e discursos, são levados à força a reuniões onde os obrigam a ouvir dissertações sobre a política do partido, além de serem isolados, para não receberem o reconforto e o apoio da Igreja.

    Em maio, por ocasião da festa da Padroeira da China — Nossa Senhora de Sheshan, próximo de Xangai — Bento XVI pediu orações pela Igreja naquele país e, sobretudo, pelos bispos, para que não defeccionem. E para que não sejam derrotados pela tentação de oportunismo, ou seja, de uma vida cômoda e de não perseguição. Uma vida tranquila é melhor do que uma vida isolada. E a Associação Patriótica exerce esse tipo de perseguição, vencendo o coração pelas suas debilidades. Infelizmente, há pessoas que por oportunismo desejam se tornar bispos, ou seja, ser promovidas a tais pelo partido, receber honrarias, uma residência cômoda e nova e, de vez em quando, lembrar-se do Papa na oração. É preciso rezar muito por elas.

    Catolicismo — Poder-se-ia então afirmar que o Partido Comunista está preocupado porque não consegue controlar a Igreja?

    Pe. Cervellera — O partido não está tão preocupado com o controle da Igreja Católica quanto com a difusão dela. O cristianismo difunde-se muitíssimo na China. E isso não obstante serem necessários três a seis meses de catecismo, assistência à missa, participação nas orações, etc. Há anualmente pelo menos 150.000 adultos – não nos referimos às crianças – que se fazem batizar. Enquanto o governo prega que a riqueza é o mais importante, as pessoas procuram a vida espiritual. Este é o motivo da perseguição. Enquanto os direitos humanos forem comer, beber, vestir, etc., o partido pode controlar. Ele pode permitir que se construa uma casa ou que se vista com roupas Armani; permite a satisfação das necessidades materiais. Mas quando surgem necessidades espirituais, o partido não sabe o que fazer e teme que as pessoas escapem de seu controle. Para os comunistas, as religiões devem ser controladas ou eliminadas. Isto cria problemas para o partido, porque na China está ocorrendo um grande renascimento religioso. Nós afirmávamos isto anos atrás e não nos davam crédito. Hoje se trata desse tema com frequência, existindo abundante documentação a respeito. Fala-se do regresso de Deus à China. As pessoas procuram algo mais do que o materialismo.

    Catolicismo — Que tipo de pessoas se convertem ao catolicismo?

    Pe. Cervellera — Todo tipo de pessoas. Mas existe uma categoria que chama especialmente a atenção. Convertem-se ao catolicismo antigos — e dos mais ardorosos — membros do Partido Comunista, que estão desiludidos pelo que ali se faz. Eles vêm que estão nas mãos de um grupo que os utiliza para ganhar dinheiro — com o qual, por sua vez, financiam o partido para que este controle o povo. Notam haver uma grande simbiose entre capitalismo e comunismo. Estão desiludidos com a insensibilidade do partido diante das necessidades das pessoas. O salário dos trabalhadores é dez vezes menor que no Ocidente, não existem auxílios de seguridade social, etc. Estes desiludidos aproximam-se da Igreja. Por exemplo, um ativista que criou um sindicato não oficial e que havia estado no massacre da Praça de Tiananmen tornou-se católico.

    Catolicismo — Existe alguma possibilidade real de a Igreja mudar a situação na China?

    Pe. Cervellera — O que teme o partido é que haja uma fusão entre a busca dos valores espirituais e a tensão dentro da sociedade. Existe nisso algum nexo. Esta tensão aparece em situações que são relativamente pouco conhecidas, mas na China há anualmente 180 mil rebeliões sociais. O governo as chama de “incidentes de massa”. São pessoas que se rebelam devido às injustiças, porque confiscaram suas casas, contaminaram os rios e não há água para beber, por problemas de transporte, saúde, etc.

    Os ex-comunistas que se tornam religiosos procuram alguma dignidade para as pessoas, e o fundamento para isso é religioso. O homem possui direitos inalienáveis. Ao Estado incumbe reconhecê-los, e não se arvorar em deter poderes para concedê-los ou não. Se o homem não tivesse uma dimensão religiosa ele seria apenas um objeto nas mãos do poder. As pessoas procuram os fundamentos espirituais do direito do homem. Um advogado cristão que defendia pessoas perseguidas por sua fé, foi sequestrado pela polícia, torturado, colocado em situação de isolamento, sem poder comer, etc. Ao ser liberado, em junho último, ele denunciou tudo quanto sofreu. Isso antes não acontecia. As pessoas começam a denunciar os maus tratos recebidos e perdem o medo que tinham. Para o governo, esta mistura de rebelião social aliada à busca de fundamentos religiosos e de coragem pode ser fatal.

    Catolicismo — É conhecido o dito de Tertuliano de que “o sangue dos mártires é semente de cristãos”. O Sr. conhece algum caso na China que nos pudesse contar?

    Pe. Cervellera — Recentemente entrevistei um chinês que acabava de se converter ao catolicismo. Eu queria saber o que o havia levado a abraçar a fé. Ele contou-me que tudo começou quando a polícia deteve um de seus vizinhos. Intrigado sobre o motivo da detenção de alguém tão tranquilo e normal como esse vizinho, foi perguntar aos familiares dele. Estes lhe disseram que havia sido preso por ser católico. Isto chamou sua atenção, pois o que podia uma fé ter de importante quando o mais valorizado na sociedade era possuir bem-estar material, comodidades e reconhecimento social? Como não entendia, começou a estudar os fundamentos de nossa Religião e constatou que a fé é o bem mais importante da vida. É por ela que arriscamos tudo o que temos. É a mais preciosa pérola. Como resultado, decidiu se converter e foi batizado. O martírio de um católico conduz à conversão de outros.
Perseguição à Igreja: fruto do pragmatismo
É curioso que aqueles mesmos que se referem, de boca cheia, ao pragmatismo dos dirigentes chineses parecem não se perguntar algo de muito importante: por que motivo os dirigentes comunistas, que demonstram pragmatismo em fazer certas mudanças no sistema econômico, continuam a perseguir de modo brutal e inclemente os católicos? Não fará isso também parte do seu pragmatismo? Não verão os dirigentes comunistas chineses nos valores religiosos, morais, culturais e sociais representados pela doutrina do Evangelho uma ameaça ao seu projeto de poder materialista e neo-imperialista?

Em vez de nos mostrarmos tão inconsequentemente eufóricos e desprevenidos diante das mudanças da China, aceitando essa invasão branca dos capitais, do comércio e da diplomacia chineses, não seria interessante questionarmos o verdadeiro sentido de toda essa transformação e do tão decantado pragmatismo chinês?

Para os católicos, creio, esse questionamento não constitui apenas um interesse, mas um dever. Afinal, nossos irmãos na Fé são os mártires de nosso século. Na China, as mudanças não mudaram uma realidade trágica para os católicos. Este martírio, curiosamente, é geralmente silenciado. Parece-me um dever de quem tem Fé preocupar-se com o destino dos irmãos nessa mesma Fé. Por isso também os convido a difundir este post de todas as formas possíveis, para que a realidade chinesa seja inteiramente conhecida.

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segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Paz, mas afinal que paz?

Paz, mas afinal que paz?


O início de um ano é ocasião própria à reflexão, momento de avaliar o que deixamos para trás, de formular anseios, de ponderar apreensões.

É natural que em nossos votos desejemos o melhor e alimentemos esperanças, para nós e para os outros, no ano que entra.

O dito popular “Ano novo, vida nova” é expressão desta realidade esperançosa. Formulamos – ainda que, por vezes, somente no interior de nossos espíritos – propósitos generosos.

Paz, paz, paz
Cumulados pelos inúmeros desencontros, tensões, crises e conflitos que assombram o mundo, há um desejo que se generaliza entre nós: a Paz! Almeja-se a Paz, pede-se a Paz! Fala-se em “construir a Paz”, em sermos “agentes da paz”, fala-se de “solidariedade” como fator da Paz, menciona-se o respeito aos “direitos do homem” como fonte da Paz.

Mas tantas são as interpretações sobre a Paz, tantos os sentidos que se procura dar ao termo que é o caso de nos perguntarmos de que Paz falamos realmente.

Será a Paz apenas o fim das crises, o cessar de qualquer conflito, o fim da efusão de sangue? Será a Paz somente a calmaria e a tranquilidade de nosso existir pessoal ou da sociedade na qual vivemos?

Paz e direitos de Deus
Os costumes modernos vão sofrendo uma inequívoca laicização, uma descristianização acentuada. Em inúmeras sociedades leis de caráter radicalmente anti-cristão vão sendo impostas. As leis de Deus são violadas desinibidamente e tal violação vai sendo consagrada como “direito humano”. Em muitos países, cristãos vão sendo perseguidos, em nome de ideologias ou de crenças religiosas.

Como podem aqueles que se dizem cristãos almejar sinceramente à Paz, se permanecem indiferentes a estas realidades e à violação dos direitos de Deus pela consolidação da injustiça? Como podem falar de “partilha” e “solidariedade” os cristãos se, por exemplo, nada fazem de concreto pelos irmãos de fé que sofrem perseguições, ou se eximem de trabalhar activamente para fazer cessar as iniquidades consagradas em legislações que promovem a morte de inocentes?

Paz com justiça
Reflectir sobre tais questões, no alvorecer de um Novo Ano, parece-me enriquecedor. Pode ajudar-nos realmente a cumprir o ditado “Ano novo, vida nova”, pois saberemos realmente de que Paz falamos e de que modo realmente alcançá-la.

Aos que lêem este blog, junto com meus votos de um bom Ano Novo, convido-os a conhecer uma compilação de dois artigos do grande pensador e homem de acção católico, Plinio Corrêa de Oliveira. Publicados em 29 de dezembro de 1940 e 5 de janeiro de 1941, no jornal Legionário, intitulados respectivamente Justitia  e Opus justitiae pax. São atualíssimas as considerações neles estampadas sobre o importante tema da “paz com justiça”:
  • "Para que se compreenda em que sentido “a paz é fruto da justiça”, é necessário, evidentemente, que se tenha um conceito certo sobre o que seja “paz” e o que seja “justiça. A paz, segundo São Tomás de Aquino, é a tranqüilidade da ordem. A definição do Santo Doutor deixa entrever que há duas espécies de tranqüilidade: a que provém da ordem e a que provém da desordem. Tome-se um adolescente saudável que dorme. Todo o seu físico está em uma ordem perfeita. Todos os órgãos funcionam admiravelmente bem. Nenhuma dor, nenhum mal-estar lhe perturba o repouso. A saúde, que é a ordem do corpo, gera nele uma tranqüilidade física que se traduz freqüentemente pela placidez do sono. Fisicamente, o sono é, para este adolescente, uma situação de paz, pois que é um momento de tranqüilidade gerada pela sua ordem orgânica.

    O mesmo conceito se pode aplicar a um povo. Suponha-se que nele tudo se encontre em ordem: as inteligências, pela posse segura e firme da Verdade que é a Religião Católica; as vontades, pela sua vigorosa adesão à virtude que a Igreja ensina e ajuda a praticar; as sensibilidades, pelo completo domínio a que a sujeitaram a inteligência e a vontade; os corpos, pela existência de um alto padrão coletivo de saúde; a vida econômica, por um perfeito aproveitamento dos abundantes recursos naturais do lugar. Evidentemente, uma grande e benfazeja tranqüilidade reinará sobre toda a sociedade, como fecundo e feliz transbordamento da tranqüilidade interior de cada alma. Esta tranqüilidade completa, decorrente da ordem intelectual, moral e econômica existente no país, é o que se pode chamar paz: será a paz interior. A paz externa se somará a esta, se também as relações do país com outros povos estiverem em ordem. Assim, a paz é realmente a tranqüilidade da ordem.

    Retomemos o exemplo do adolescente. Em dado momento, durante seu sono plácido, alguma perturbação orgânica ocorre: será, por exemplo, uma nevralgia violentíssima. Imediatamente, com a cessação da ordem orgânica, desaparecerá a paz: o sono cessa, e o paciente começa a dar mostras agudas da sua dor. É a desordem, gerando a intranqüilidade. Imagine-se, entretanto, que a dor aumente tanto que chegue a causar um desmaio do paciente: a desordem orgânica terá chegado a seu auge, e a perda dos sentidos e a completa tranqüilidade do desmaio não serão senão a consumação da desordem física. Essa desordem, exatamente por se ter tornado muito aguda e ter com isto suprimido todos os meios de resistência, causará, com a aparente cessação da reação orgânica, uma tranqüilidade profunda. Esta tranqüilidade será o reinado da desordem, será o cúmulo da desordem, será a desordem erigida em soberania absoluta do corpo: ela não será senão uma caricatura da tranqüilidade da ordem.Em suma, o sono do adolescente, tranqüilo e saudável, e o desmaio profundo e perigoso que imaginamos em seguida, estão nos extremos opostos. Nos exemplos que figuramos, o maior bem orgânico do corpo terá sido a tranqüilidade da ordem; a intranqüilidade decorrente da desordem será um mal; mas o mal supremo será sem dúvida a tranqüilidade da desordem, ou seja o desmaio, para não dizer a morte.

    Para resumir: a tranqüilidade da ordem é um grande bem, e só ela merece o nome de paz; a luta gerada pela desordem é um mal incontestável, mas o maior dos males será, certamente, a tranqüilidade da desordem, a tranqüilidade das consciências embrutecidas no vício, dos corpos desmaiados pela moléstia, dos cemitérios onde a morte campeia como soberana, e onde não penetra nada que seja vivo.

    Estes conceitos merecem ser transpostos para o plano internacional. Só merece o nome de verdadeira paz a tranqüilidade decorrente da ordem nas relações entre as nações. E como a ordem supõe obediência a Deus, só haverá ordem internacional quando houver obediência à Lei de Deus nas relações entre os povos.

    Evidentemente, violações da Lei de Deus sempre as houve e sempre as haverá, com freqüência maior ou menor, na História da humanidade. Mas que se transforme a violação em direito, a desordem em hierarquia legítima e permanente, e se arvore como princípio básico e fundamental aquilo que é a negação radical e absoluta de toda a Lei de Deus, há nisto uma desordem monstruosa e profunda, com a tendência de se tornar definitiva, que deve apavorar todo o espírito em que ainda bruxuleiam alguns lampejos, já não direi do senso católico, mas de simples e reta razão natural. Com efeito, o risco a que aludimos não consiste em uma simples injustiça. É na glorificação da injustiça como tal. É na consolidação da injustiça. É na entronização da injustiça como regra fundamental de ação e norma basilar das relações entre os povos.

    A paz internacional será uma paz autêntica se ela for a conseqüência da aplicação dos princípios da Lei de Deus à vida internacional. Realmente, a Lei cumprida gera ordem, e a ordem gera a tranqüilidade, e esta tranqüilidade da ordem será a paz.

    Será uma desgraça, já é agora uma desgraça catastrófica, que a tranqüilidade da ordem seja violada, e que esta violação traga lutas cruentas como aquelas que atualmente assistimos. A humanidade contemporânea pode ser comparada a um homem doente que se contorce tragicamente nos paroxismos da dor. E este espetáculo não pode deixar de concitar à piedade e à prece os espíritos compassivos.

    Mas por mais trágicas que sejam as contorções, por mais pavorosa que seja a intranqüilidade dantesca da desordem a que presenciamos, há um mal ainda maior: é a tranqüilidade da desordem.Realmente, se a moléstia é pior do que a saúde, a morte é pior do que a moléstia. Um mundo que se tranqüilize na desordem, do qual desapareça qualquer reação de vulto contra a desordem cristalizada em instituto de direito internacional, é um mundo mil vezes mais indigente, mais desamparado e mais infeliz do que aquele que ainda dispõe de heróis em que pode confiar, ainda conta com exércitos atrás dos quais se possa escudar, ainda vê luzir, com a esperança de uma próxima vitória do Bem, a possibilidade de uma ordem completa não tardar a reinar.

    E por isso é que cometem um pavoroso atentado contra o senso católico aqueles que, desgovernados por uma sensibilidade mórbida, preferem a paz na abominação e na desordem, em vez de que venha logo a paz com ordem, que todos devemos pedir a Deus.

                                                                      * * *

    Se a paz com justiça é um bem inestimável, a tranqüilidade decorrente da injustiça consumada, e que implique na cessação de qualquer resistência contra os fatores de desagregação da civilização católica, não pode deixar de constituir uma monstruosa catástrofe para o mundo contemporâneo, certamente comparável ao que foi, para a antigüidade romana, a queda do Império do Ocidente.

    Consideremos o sentido corrente do vocábulo, que é ao mesmo tempo seu sentido mais restrito. Não pode haver justiça quando se nega aos povos fracos o direito de existir. Não pode haver justiça quando se afirma que a ordem internacional não deve ser baseada sobre o princípio de igualdade fundamental e natural de todos os povos, mas sobre uma hierarquia anti-científica de raças, que, baseada na apreciação de valores acidentais ou imaginários, deseja fazer com que o mundo inteiro viva para o uso e gozo de um ou de poucos povos, supostos privilegiados. Todos estes conceitos implicam em uma violação radical da verdade, e em uma subversão fundamental da justiça, de modo que a paz baseada sobre eles outra coisa não seria senão a apoteose da injustiça.Mas as injustiças que acabo de me referir não são as mais graves de que o homem é capaz. A violação dos direitos do próximo nunca poderia ser compreendida em toda a sua gravidade se não tivéssemos em mente que ela constitui ao mesmo tempo uma violação dos soberanos e adoráveis direitos de Deus. De todos os seres, nenhum há em relação ao qual o homem tenha direitos tão sagrados como Deus. A diferença entre os direitos de Deus e dos homens se pode medir pela diferença que vai do Criador à mísera criatura. E como a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, é o Reino de Deus na terra, é o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, é a depositária da Verdade, a Arca dos Sacramentos, inestimável obra-prima de Deus, não se pode ferir os direitos de Deus sem implicitamente ferir os da Igreja; e, por outro lado, não se pode ferir os da Igreja sem ferir os de Deus. Jesus Cristo e sua Igreja constituem o Esposo e a Esposa dos cânticos.

    Seus direitos se confundem, e tentar separá-los já é violá-los.

    Assim, se a paz só deve ser desejada pelos fiéis com a condição de que ela respeite os direitos dos homens, a fortiori deve ela parecer sumamente repugnante a qualquer coração verdadeiramente católico, se tiver por base o repúdio dos direitos de Deus.Tenho plena certeza de que muitos leitores, se bem que concordando em tese com o que acabo de dizer, sentem uma certa estranheza à vista da afirmação que faço. Direitos de Deus? Como poderia uma paz violá-los? Que relação pode haver entre uma coisa e outra?

    O assunto é por demais complexo para ser debatido neste artigo.

    Aliás, nem pode ele ser compreendido por quem não o analise com zelo. Todos sabem como o amor de Deus costuma multiplicar os recursos da inteligência e da vontade do homem, de sorte que eles se tornam aptos a compreenderem as coisas com uma clareza e com uma energia por vezes superiores a seus recursos naturais, desde que entre em jogo os sagrados direitos da Santa Igreja. É a estes espíritos que me dirijo.

    Toda a vitória que represente não apenas o triunfo de um país mas de uma ideologia, não somente de um povo, mas de uma filosofia, evidentemente será uma derrota dos católicos, desde que essa ideologia teológica ou filosófica não seja a da Igreja. Assim, qualquer paz que signifique o franqueamento de todas as fronteiras à dissolução de doutrinas que são contrárias às de Jesus Cristo, será por certo uma paz que um católico não pode desejar.
    Poderá alguém sorrir ao ler estas linhas. Qual o valor de nossa contribuição pessoal no curso dos acontecimentos ciclópicos, em que as forças mais poderosas se empenham em luta de morte? Para que, então, tratar deste assunto?

    A resposta é simples. Não há acontecimentos em que não esteja presente a providência de Deus. Não há armas que possam vencer a omnipotência do Criador. E não há graças que a oração não possa alcançar. Em proveito dos supremos interesses de todos os católicos, que são os interesses da Igreja, em benefício dos interesses mais fundamentais e mais sagrados de nosso diletíssimo Brasil, ao par da mobilização de todos os recursos naturais, há sempre a mobilização possível dos recursos sobrenaturias, mais poderosos, mais decisivos, mais importantes do que aqueles.

    Os estadistas de nossos dias confiam apenas nos braços que empunham fuzis. Longe de nós o imaginar que quem quer que seja esteja dispensado de empunhar o fuzil para cumprir seu dever para com a Igreja ou a Pátria. Mas há braços que, não podendo empunhar fuzis, podem empunhar certamente rosários, e os próprios braços que empunham fuzis sentirão, decuplicar suas forças se souberem alternar o manejo da arma e a do Terço.

    Para rezar, somos todos poderosos. Rezemos muito, e sobretudo rezemos bem.

    A Sagrada Liturgia tem uma oração que se pede a Nosso Senhor a graça de conhecermos Sua Vontade, de modo que, pedindo-Lhe coisas que Lhe são agradáveis, consigamos obter o que por nossas preces suplicamos.

    Se queremos a paz, peçamos uma paz conforme o Coração de Jesus. Porque se pedirmos uma paz que não seja a paz com justiça, a paz de Cristo no Reino de Cristo, que esperanças podemos ter de ser atendidos? "
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