China: mudanças que não mudam
Há anos que a China se tornou uma unanimidade. Como todas as unanimidades, em que entra a propaganda, junto a banalidades – repetidas como grandes dados do saber – esgueiram-se mistificações e inverdades.
Pergunte-se o leitor o que ouve dizer sobre a China nos meios de comunicação ou nas rodas de conversa de que participa.
Dirão que a China é o País mais populoso do mundo; que sua cultura é milenar; que a Muralha da China pode ser vista da Lua; que a China caminha para se tornar a grande potência do futuro. Tornou-se ainda voz corrente afirmar que o regime chinês tem passado por mudanças profundas, que seu crescimento econômico é avassalador, que algumas de suas cidades se encheram de arranha-céus, de viadutos, de automóveis, de gente que está imersa no estilo de vida frenético contemporâneo.
Natureza das mudanças
É bem verdade que se questionarmos no que consistem precisamente tais mudanças, as respostas de muitos serão vagas ou generalistas.
Mencionarão a adoção do “capitalismo” pela China e elogiarão o espírito pragmático de seus dirigentes, que fizeram o país encher-se de oportunidades de negócios, dando abertura para investidores estrangeiros e criando oportunidades de chineses ingressarem nas atividades empresariais; outros mencionarão ainda as Olimpíadas de Pequim, o evento internacional de grande projeção simbólica que teria definitivamente consagrado a entrada da China na chamada modernidade.
Poucos se referirão à corrida armamentista da China, ao neo-imperialismo chinês na África e na América do Sul, às práticas pouco honestas no comércio internacional, à ofensiva geo-política em busca de petróleo, de minério de ferro e de outras matérias primas, à violação sistemática de segredos industriais de grandes companhias, ao regime de trabalhos forçados ou de baixa remuneração, ao desrespeito aos direitos mínimos dos trabalhadores e às milhares de revoltas sociais, ou ainda ao sistema ditatorial de partido único do regime comunista chinês.
Mudou a natureza ideológica do regime?
Ninguém nega que mudanças estão ocorrendo na China, embora elas não correspondam à ideia simplista que das mesmas fazem muitos ocidentais. Os dirigentes chineses falam do “socialismo de mercado”, uma fórmula em que o Estado está presente no capital de todas as empresas e em que a estratégia de investimentos é decidida pelo Politburo do Partido. Mas isso seria tema para outro artigo.
A meu ver uma pergunta fundamental se impõe: basta um regime de Partido Único, o Partido Comunista Chinês, empreender algumas mudanças sócio-econômicas, para se poder afirmar que a natureza profunda de sua ideologia – ateia e materialista – mudou substancialmente?
O que mais chama a atenção é que muitos católicos ocidentais dão aval – por vezes de modo eufórico – à tão difundida versão de que a China mudou, que ela renunciou à sua ideologia e aderiu pragmaticamente à economia de mercado. Será que a maior parte desses católicos tem noção de qual é a realidade vivida por seus irmãos de fé na China?
Creio bem que se impõe uma reflexão a respeito.
Perseguição sistemática aos católicos
Desde a revolução maoísta que levou o Partido Comunista Chinês a tomar o poder em 1949, os católicos passaram a viver sob a perseguição e o terror. As táticas e estratégias repressivas sofreram adaptações ao longo dos anos, inclusive com a criação de uma organização fantoche, a chamada Igreja Patriótica, rompida com Roma e totalmente dependente do regime. Apesar de todas as mudanças que se operaram na China a perseguição aos católicos recrudesceu, e eles continuam obrigados a praticar a religião na clandestinidade, como se vê, por exemplo, na foto da Missa que ilustra este post.
Gostaria, pois, de compartilhar com os leitores do Radar da Mídia a substanciosa entrevista concedida em Roma pelo Pe. Bernardo Cervellera, do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras, à revista de cultura católica Catolicismo (nov. 2011). Considerado o maior especialista romano sobre a Igreja na China, o Pe. Cervellera foi Professor da Universidade Beida, em Pequim, foi diretor da Agência de imprensa vaticana “Fides” e atualmente é o diretor da prestigiosa Agência AsiaNews:
- “ Catolicismo — Circularam ultimamente muitas notícias sobre um esfriamento das relações entre a China e o Vaticano. O que há de certo nisso?
Pe. Cervellera — Sou convidado algumas vezes a participar de encontros com industriais italianos que me perguntam sobre a China. Quando me refiro às perseguições que sofrem lá os católicos, ficam surpresos. Porque hoje muitíssimas pessoas possuem uma imagem turística da China, aliada a uma noção confusa oriunda de notícias que informam sobre a quantidade de arranha-céus construídos nas grandes cidades, da existência de grande número de automóveis Ferrari, do aumento da renda média do trabalhador chinês, etc. Pensam tais pessoas que, pelo fato de a China estar apresentando aparentes mudanças do comunismo para o capitalismo, a situação dos direitos humanos também se alterou. Acompanho há 20 anos a situação chinesa e posso afirmar que, se do ponto de vista geográfico muita coisa mudou (novas autopistas, condomínios, trens, etc.), por outro lado, a perseguição religiosa manteve-se sempre constante.
Houve há poucos meses sagrações ilícitas de bispos, ou seja, sem mandato papal. Nos últimos quatro anos ocorreram cinco dessas sagrações. Alguns bispos débeis ou timoratos foram obrigados a participar das mesmas, tendo sido conduzidos à força pela polícia. Isto é algo que não se registrava desde a época da Revolução Cultural dos anos 50 e do início do maoísmo. Época na qual se tentava criar uma igreja nacional composta de padres e bispos sob a direção do Partido Comunista Chinês. Na teoria, uma igreja independente de Roma; na prática, dependente do governo comunista. Perguntei recentemente a um católico chinês sobre a mudança de rumo do governo. Ele simplesmente respondeu-me dizendo que para os estrangeiros parece que a China mudou, quando ela, de fato, sempre foi assim. Há uma perseguição contínua, cuja extensão pode ter variado um pouco, mas nunca cessou desde que os comunistas tomaram o poder em 1949.
Catolicismo — Os bispos chineses fiéis ao papado continuam sendo presos?
Pe. Cervellera — Por uma sugestão de Stalin a Mao Tsé-Tung, o Partido Comunista Chinês quis inicialmente exterminar a Igreja, mas isto não funcionou. Criaram então, em 1957, a Associação Patriótica, a qual ficou encarregada pelo Partido Comunista de controlar a Igreja. Já o Papa Pio XII condenou essa associação em 1958 e declarou que os bispos que sagrassem outros bispos escolhidos por ela estavam excomungados. Todos os bispos que se opuseram, nos anos 50, a essa manobra comunista, terminaram na prisão, sendo obrigados a permanecer 20 ou 30 anos sob o regime de trabalhos forçados. Por exemplo, o bispo de Xangai, D. Ignatius Kung; o bispo de Booding, D. José Fan Xueyan; o bispo de Cantão, D. Dominic Tan Yee-Ming, e tantos outros. Há ainda vários bispos “clandestinos” — ou seja, que se negam a fazer parte dessa Associação Patriótica — os quais se encontram nas mãos da polícia. É o caso, por exemplo, de D. Jacobo Su Zhimin, há 15 anos nessa situação. Ele está desaparecido e sem sinais de vida. E isso só por não querer fazer parte da Associação Patriótica. Também o bispo de Yixian, D. Cosme Shi Enxiang, encontra-se nas mãos da polícia há 10 anos. De forma totalmente ilegal, apesar das poucas leis existentes na China. Estamos preocupados, porque muitos bispos que a polícia fez desaparecer, reapareceram depois... mortos.
Foi o caso, entre outros, de D. José Fan Xuyean, bispo de Booding. Após passar três meses nas mãos da polícia, em 1992, seu cadáver foi deixado diante da porta de sua casa, envolto em papel celofane. Seus familiares constataram que ele tinha sido torturado brutalmente, a ponto de ter uma de suas pernas quebrada. Era um ancião de 90 anos, que já havia passado 32 anos na prisão.
Há poucos anos ocorreram outras mortes. Em 2007, alguns meses antes das Olimpíadas (esta celebração da modernidade da China...), um dos prelados da província Hebei, D. Giovanni Han Dingxian, bispo de Yongnian, reapareceu num hospital após seis anos de detenção. Seus familiares encontraram-no moribundo. De fato, ele faleceu às 23 horas daquele mesmo dia. Seu corpo foi cremado e sepultado às 5 horas da manhã, sem a presença dos familiares. Os fiéis julgam que a cremação foi efetuada para evitar as provas que derivariam da autópsia.
Catolicismo — Qual é a situação atual dos bispos “subterrâneos”, considerados “ilegais” pelo regime comunista?
Pe. Cervellera — Existem na China 37 bispos “subterrâneos”, ou seja, que não pertencem à igreja oficial, controlada pela Associação Patriótica. Esses bispos encontram-se em prisão domiciliar; estão isolados, não podem exercer seu ministério. O mais velho deles é o bispo de Zhengding, D. Julio Jia Zhiguo, muito estimado pela população. Ele mantém 200 meninos abandonados, sobretudo deficientes físicos, que não são aceitos por motivos culturais. O bispo lhes proporciona roupa e alimento, cuida dessas crianças com a ajuda de algumas freiras. Ele é vigiado dia e noite por quatro policiais, para que não possa sair de casa nem se encontrar com quaisquer pessoas. Sua “culpa”: não querer renunciar a seus vínculos com o Papa. Muitas vezes é preso e levado para “férias” forçadas, a fim de receber doutrinação política do Partido Comunista sobre a grandeza de seu programa e de como se deve dar adesão ao mesmo.
Atualmente até os bispos da igreja oficial — de obediência ao governo — estão na mira do Partido Comunista. Não é uma perseguição na qual eles são conduzidos a campos de trabalhos forçados ou fuzilados, mas são controlados. Desde 2006, quando das novas sagrações ilegais, eles são seguidos e controlados em suas viagens pastorais. Por que este medo do governo? É que, graças ao trabalho dos Papas, quase todos esses bispos da igreja oficial — sagrados mediante intervenção do partido e sem permissão papal — escreveram ao Vaticano pedindo perdão pela sua situação, tendo sido reintegrados na comunhão católica. Quando o Papa Bento XVI escreveu uma carta aos católicos da China, em 2007, ele a enviou indistintamente aos bispos da Igreja Católica, não fazendo distinção entre aqueles que eram fiéis e os que não eram.
Catolicismo — Se há tantos bispos que tiveram de pedir perdão ao Papa por estarem ligados à Associação Patriótica, por que o governo tem tanto medo deles?
Pe. Cervellera — Porque a Igreja Católica chinesa é hoje muitíssimo mais unida que no tempo da Revolução Cultural ou nos anos 80. Este é o ponto importante e o que explica o aumento da perseguição. A unidade da Igreja na China é um dos grandes fracassos do Partido Comunista Chinês. Nos anos 50 eles queriam destruir todas as religiões. Convencendo-se de que não o conseguiam, tentaram então criar religiões nacionais — seja a budista, a islâmica, ou igrejas protestantes nacionais. E, transcorridos 60 anos, na prática, a Igreja Católica é hoje mais unida do que antes. É por isso que a Associação Patriótica — cujo novo presidente é paradoxalmente um bispo em comunhão pessoal com o Papa — deseja a sagração de bispos ilegítimos, a ponto de forçar um bispo excomungado a ser presidente de um organismo subordinado a ela, a conferência dos bispos da igreja patriótica. Este é um modo de misturar as coisas, criar divisão e confusão generalizada.
A situação é muito dura. Os bispos oficiais [subservientes ao regime] e os “subterrâneos” [obedientes a Roma] são muito controlados. Fiscalizam-se todos os seus encontros e discursos, são levados à força a reuniões onde os obrigam a ouvir dissertações sobre a política do partido, além de serem isolados, para não receberem o reconforto e o apoio da Igreja.
Em maio, por ocasião da festa da Padroeira da China — Nossa Senhora de Sheshan, próximo de Xangai — Bento XVI pediu orações pela Igreja naquele país e, sobretudo, pelos bispos, para que não defeccionem. E para que não sejam derrotados pela tentação de oportunismo, ou seja, de uma vida cômoda e de não perseguição. Uma vida tranquila é melhor do que uma vida isolada. E a Associação Patriótica exerce esse tipo de perseguição, vencendo o coração pelas suas debilidades. Infelizmente, há pessoas que por oportunismo desejam se tornar bispos, ou seja, ser promovidas a tais pelo partido, receber honrarias, uma residência cômoda e nova e, de vez em quando, lembrar-se do Papa na oração. É preciso rezar muito por elas.
Catolicismo — Poder-se-ia então afirmar que o Partido Comunista está preocupado porque não consegue controlar a Igreja?
Pe. Cervellera — O partido não está tão preocupado com o controle da Igreja Católica quanto com a difusão dela. O cristianismo difunde-se muitíssimo na China. E isso não obstante serem necessários três a seis meses de catecismo, assistência à missa, participação nas orações, etc. Há anualmente pelo menos 150.000 adultos – não nos referimos às crianças – que se fazem batizar. Enquanto o governo prega que a riqueza é o mais importante, as pessoas procuram a vida espiritual. Este é o motivo da perseguição. Enquanto os direitos humanos forem comer, beber, vestir, etc., o partido pode controlar. Ele pode permitir que se construa uma casa ou que se vista com roupas Armani; permite a satisfação das necessidades materiais. Mas quando surgem necessidades espirituais, o partido não sabe o que fazer e teme que as pessoas escapem de seu controle. Para os comunistas, as religiões devem ser controladas ou eliminadas. Isto cria problemas para o partido, porque na China está ocorrendo um grande renascimento religioso. Nós afirmávamos isto anos atrás e não nos davam crédito. Hoje se trata desse tema com frequência, existindo abundante documentação a respeito. Fala-se do regresso de Deus à China. As pessoas procuram algo mais do que o materialismo.
Catolicismo — Que tipo de pessoas se convertem ao catolicismo?
Pe. Cervellera — Todo tipo de pessoas. Mas existe uma categoria que chama especialmente a atenção. Convertem-se ao catolicismo antigos — e dos mais ardorosos — membros do Partido Comunista, que estão desiludidos pelo que ali se faz. Eles vêm que estão nas mãos de um grupo que os utiliza para ganhar dinheiro — com o qual, por sua vez, financiam o partido para que este controle o povo. Notam haver uma grande simbiose entre capitalismo e comunismo. Estão desiludidos com a insensibilidade do partido diante das necessidades das pessoas. O salário dos trabalhadores é dez vezes menor que no Ocidente, não existem auxílios de seguridade social, etc. Estes desiludidos aproximam-se da Igreja. Por exemplo, um ativista que criou um sindicato não oficial e que havia estado no massacre da Praça de Tiananmen tornou-se católico.
Catolicismo — Existe alguma possibilidade real de a Igreja mudar a situação na China?
Pe. Cervellera — O que teme o partido é que haja uma fusão entre a busca dos valores espirituais e a tensão dentro da sociedade. Existe nisso algum nexo. Esta tensão aparece em situações que são relativamente pouco conhecidas, mas na China há anualmente 180 mil rebeliões sociais. O governo as chama de “incidentes de massa”. São pessoas que se rebelam devido às injustiças, porque confiscaram suas casas, contaminaram os rios e não há água para beber, por problemas de transporte, saúde, etc.
Os ex-comunistas que se tornam religiosos procuram alguma dignidade para as pessoas, e o fundamento para isso é religioso. O homem possui direitos inalienáveis. Ao Estado incumbe reconhecê-los, e não se arvorar em deter poderes para concedê-los ou não. Se o homem não tivesse uma dimensão religiosa ele seria apenas um objeto nas mãos do poder. As pessoas procuram os fundamentos espirituais do direito do homem. Um advogado cristão que defendia pessoas perseguidas por sua fé, foi sequestrado pela polícia, torturado, colocado em situação de isolamento, sem poder comer, etc. Ao ser liberado, em junho último, ele denunciou tudo quanto sofreu. Isso antes não acontecia. As pessoas começam a denunciar os maus tratos recebidos e perdem o medo que tinham. Para o governo, esta mistura de rebelião social aliada à busca de fundamentos religiosos e de coragem pode ser fatal.
Catolicismo — É conhecido o dito de Tertuliano de que “o sangue dos mártires é semente de cristãos”. O Sr. conhece algum caso na China que nos pudesse contar?
Pe. Cervellera — Recentemente entrevistei um chinês que acabava de se converter ao catolicismo. Eu queria saber o que o havia levado a abraçar a fé. Ele contou-me que tudo começou quando a polícia deteve um de seus vizinhos. Intrigado sobre o motivo da detenção de alguém tão tranquilo e normal como esse vizinho, foi perguntar aos familiares dele. Estes lhe disseram que havia sido preso por ser católico. Isto chamou sua atenção, pois o que podia uma fé ter de importante quando o mais valorizado na sociedade era possuir bem-estar material, comodidades e reconhecimento social? Como não entendia, começou a estudar os fundamentos de nossa Religião e constatou que a fé é o bem mais importante da vida. É por ela que arriscamos tudo o que temos. É a mais preciosa pérola. Como resultado, decidiu se converter e foi batizado. O martírio de um católico conduz à conversão de outros. “
É curioso que aqueles mesmos que se referem, de boca cheia, ao pragmatismo dos dirigentes chineses parecem não se perguntar algo de muito importante: por que motivo os dirigentes comunistas, que demonstram pragmatismo em fazer certas mudanças no sistema econômico, continuam a perseguir de modo brutal e inclemente os católicos? Não fará isso também parte do seu pragmatismo? Não verão os dirigentes comunistas chineses nos valores religiosos, morais, culturais e sociais representados pela doutrina do Evangelho uma ameaça ao seu projeto de poder materialista e neo-imperialista?
Em vez de nos mostrarmos tão inconsequentemente eufóricos e desprevenidos diante das mudanças da China, aceitando essa invasão branca dos capitais, do comércio e da diplomacia chineses, não seria interessante questionarmos o verdadeiro sentido de toda essa transformação e do tão decantado pragmatismo chinês?
Para os católicos, creio, esse questionamento não constitui apenas um interesse, mas um dever. Afinal, nossos irmãos na Fé são os mártires de nosso século. Na China, as mudanças não mudaram uma realidade trágica para os católicos. Este martírio, curiosamente, é geralmente silenciado. Parece-me um dever de quem tem Fé preocupar-se com o destino dos irmãos nessa mesma Fé. Por isso também os convido a difundir este post de todas as formas possíveis, para que a realidade chinesa seja inteiramente conhecida.
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